terça-feira, 27 de abril de 2010

Golpe militar?




José Gomes Ferreira

(25 de Abril de 1974)

Manhãzinha cedo, senti acordar-me o sopro da voz ciciada de minha mulher:
- 0 Fafe telefonou de Cascais, ... Lisboa está cercada por tropas…
Refilo, rabugento:
- Hã?
E enrolo-me mais nos lençóis:
- É algum golpe militar reaccionário dos «ultras»... Deixa-me dormir.
Mas qualquer coisa começou a magoar-me a pele com dentes frios, para me dissuadir de adormecer.
E daí a instantes a minha mulher insistiu, baixinho, muito baixinho, com medo de não haver realidade:
-Só funciona o Rádio Clube que pede às pessoas que se conservem em casa.

Golpe militar? Reaccionário, evidentemente. Como se poderia conceber outra coisa?
Levanto-me preparado para o pesadelo de ouvir tombar pedras sobre cadáveres. Espreito através da. janela. Pouca gente na rua. Apressada. Tento sintonizar a estação da Emissora Nacional. Nem, um som. Em compensação o telefone vinga-se desesperadamente. Um polvo de pânico desdobra-se pelos fios. A campainha toca cada vez mais forte.
Agora é o Carlos de Oliveira.
-Está lá? Está lá? É você, Carlos? Que se passa?
Responde-me com uma pergunta qualquer do avesso.
Ás oito da manhã o Rádio Clube emite um comunicado ainda pouco claro:
- Aqui, Posto de Comando das forças Armadas. Não queremos derramar a mínima gota de sangue.
De novo o silêncio. Opressivo. De bocejo. Inútil. A olhar para o aparelho.
Custa-me a compreender que se trate de revolução. Falta-lhe o ruído, (onde acontecerá o espectáculo?), o drama, o grito. Que chatice!
A Rosália chama-me, nervosa:
- Outro comunicado na Rádio. Vem, depressa.
Corro e ouço:
-Aqui o Movimento das Forças Armadas que resolveu libertar a Nação das forças que há muito a dominavam. Viva Portugal!
Também pede à policia que não resista. Mas Senhor dos Abismos!, trata-se de um golpe contra o fascismo (isto é: salazismo-caetanismo).

São dez e meia e não acredito que os «ultras» não se mexam, não contra-ataquem!
Ou tudo ruirá de podre, sem o brandir de uma bandeira qualquer de, heroísmo, um berro, um suicídio, um brado? Nas ruas (avisto da janela da sala de jantar) as mulheres, correm com sacos de alimentos. A poetisa Maria Amélia Neto telefona-me: «Não resisti e vim para o escritório».
Os revoltosos estão a conferenciar com o ministro do Exército. Na Rádio a canção do Zeca Afonso: Grândola, vila morena ... Terra da fraternidade... 0 povo é quem mais ordena...
Sinto os olhos a desfazerem-se em lágrimas. Ainda assisti, ainda assisti à morte deste maldito meio século de opressão imbecil. Ao mesmo tempo nunca vivi horas mais aborrecidas de espera, de frigorífico, ao som de baladas, medíocres, sem lances dramáticos. E não serão assim sempre as verdadeiras revoluções?... interrogo-me. Em silêncio. Sem teatro por fora. Em segredo. Com pantufas.
De súbito, aliás, a Rádio abre-se em notícias. 0 Marcelo está preso no Quartel do Carmo. A polícia e a Guarda Republicana renderam-se. 0 Tomás está cercado noutro quartel qualquer. E, pela primeira vez, aparece o nomeado General Spínola. Novo comunicado das Forças Armadas. 0 Marcelo ter-se-á rendido ao ex-governador da Guiné. (Lembro-me do Salazar: «o poder não pode cair na rua»).
Abro a janela e apetece-me berrar: acabou-se! acabou-se finalmente este tenebroso e ridículo regime de sinistros Conselheiros Acácios de fumo que nos sufocou durante anos e anos de mordaças. Acabou-se. Vai recomeçar tudo.

A Maria Keil telefonou. 0 Chico, está doente e sozinho em casa. Chora. (Nesta revolução as lágrimas são as nossas balas. Mas eu vi, eu vi, eu vi! ... )
Antes de morrer, a televisão mostrou-me um dos mais belos momentos humanos da História deste povo, onde os militares fazem revoluções para lhes restituir a liberdade: a saída dos prisioneiros políticos de Caxias.
Espectáculo de viril doçura cívica em que os presos... alguns torturados durante dias e noites sem fim.... não pronunciaram uma palavra de ódio ou de paixões de vingança.
E o telefone toca, toca, toca... Juntámos as vozes na mesma alegria. (Só é pena que os mortos não nos possam também telefonar da Morte: o Bento de Jesus Caraça, o Manuel Mendes, o Casais Monteiro, o Redol, o Edmundo de Bettencourt, o Zé Bacelar, a Ofélia e o Bernardo Marques, o Pavia, o Soeiro Pereira Gomes e outros, muitos, tantos... Tenho de me contentar com os vivos. Porque felizmente dos vivos poucos traíram ou desanimaram. Resistimos quase todos de unhas, cravadas, nas palmas das mãos...
De repente, estremeço, aterrado.
Mas isto de transformar o mundo só com vivos não será difícil?
Saio de casa. E uma rapariga que não conheço, que nunca vi na vida, agarra-se a mim aos beijos.
Revolução.


José Gomes Ferreira


4 comentários:

andrade da silva disse...

SIM SIM SIM SÓ PODIA SER ABRIL. SÓ ABRIL PODERIA NÃO QUERER SACRIFICAR O POVO.ERA ABRIL, ERA A LIBERDADE.

DEPOIS VEIO A REVOLUçÃO, ALGUNS DISPARATES, MUITOS OPORTUNISMOS, MUITOS DOGMATICOS, MUITOS ENCARTADOS DE REVOLUCIONÁRIOS E PIOR OS TRAIDORES OS EXCESSOS E PARA DEBELAREM UM TOTALITARISMO QUE DENUNCIAVAM TUDO QUEIMARAM e SOBRETUDO A CIDADANIA E AGORA FALAM DE NOVO 25 de ABRIL, SÒ SE FOR PARA MORRER NUM 28 DE MAIO OU 25 DE NOVEMBRO QUALQUER.

A MENTIRA NUNCA SERÁ ABRIL.
abraço e saudações ao PORTUGAL DE ABRIL QUE QUER CONTINUAR ABRIL, ESTE ABRIL.
asilva

Marília Gonçalves disse...

Memórias de presos políticos


Fui preso e levaram-me para o Aljube, uma cadeia sinistra que fechou em 1966. […] Os
«curros» do Aljube eram espaços de quatro palmos por oito, nalguns casos. […] Nem parecia
que fosse sítio para meter gente.
Na Antónia Maria Cardoso a rotina habitual: «– Senhor Oneto! Daqui só sai de gatas e a
lamber o chão… Enquanto não falar não sai». Aplicaram-me a tortura do sono. Às tantas perdia-
se a noção de estar sentado ou de pé. Ao quarto dia ou ao quinto vinham as alucinações.
[…] As pernas incharam-me de tal maneira que rebentaram as calças e os sapatos. […]
O Tinoco disse-me: «Você não fala e isto agora vai piorar. A partir da meia-noite leva
pancada.» De facto, à meia-noite entraram quatro facínoras que me bateram até às cinco da
manhã. Sem armas. Espancamento de luxo. Se eu fosse, por exemplo, um mineiro de Aljustrel,
atiravam-me com as cadeiras, com a mesa, agrediam-me à paulada.
Fernando Oneto, Diário de Notícias, Fevereiro de 1975.

Marília Gonçalves disse...

Fui preso em Coimbra, em Abril de 1962, condenado, e libertado 3 anos e meio depois,
sujeito a «medidas de segurança». Estas medidas incluíam a obrigatoriedade de residência
fixa. Não pude sair de Coimbra, sem autorização da PIDE, durante mais de três anos.
A minha prisão teve consequências muito nefastas a todos os níveis: «Só para conseguir
obter a Carta de Curso, para exercer a minha profissão de médico, atrasaram-me cerca de um
ano (fora os anos em que estive preso).
Duvidavam que pudesse exercer a minha profissão, já que era considerado um «criminoso
que havia sido condenado a pena maior».
Uma das técnicas da PIDE para atrasar a licenciatura de estudantes, era a de os prender
quando se dirigiam à Universidade para fazer exame. A detenção era feita sob o pretexto de
obter declarações. Pouco tempo mais tarde, libertavam-nos – quando já havia passado a hora
de fazer exame.
A minha prisão resultou da minha actividade no PCP, antes, durante e depois das
«eleições» a que concorreu o General Humberto Delgado.
A oposição ao regime era então principalmente liderada pelo Partido Comunista, tendo
sido as eleições de 1960/61, as primeiras em que toda a força da oposição se exerceu mais
decididamente.
Quando fui preso, levaram-me algemado para a PIDE, em Lisboa. Posteriormente estive
no Aljube, e mais tarde em Caxias e no Forte de Peniche.
A minha cela no Aljube, onde estive em completo isolamento, media cinco palmos de
largura por dezassete de comprimento. A cela não tinha janela para a rua, mas somente uma
abertura para o corredor da prisão. Fui sujeito a interrogatórios, que duravam normalmente
seis meses – mas a PIDE tinha a possibilidade de prorrogar esse prazo. Os interrogatórios eram
feitos pela calada da noite.
Nesses interrogatórios, fui sujeito às torturas do sono e de «estátua».
Era a este tipo de torturas (sono e estátua) que a PIDE normalmente sujeitava os intelectuais.
Mas outras pessoas menos conhecidas, como operários e camponeses, eram frequentemente
sujeitos a espancamentos.
Provocavam alucinações e a perda de certas formas de consciência. Ao fim de muito
tempo de privação de sono, há alterações físicas e mentais. Testemunhei o enlouquecimento
de pelo menos quatro pessoas.
Louzã Henriques, Jornal de Coimbra, 20/4/1994.
Durante os interrogatórios a que fui sujeito pela PIDE, em Lisboa, sofri tortura moral na
forma de insultos soezes, ofensivos da dignidade humana. Os insultos eram dirigidos a mim e
à minha família. Durante os interrogatórios, os PIDES especulavam com a correspondência
dos meus familiares. Não me mostravam as cartas, e davam-me a entender que os familiares
me viriam visitar, e pediam que eu colaborasse nas investigações, pois de outro modo
sujeitava-me a não ser visitado pela família, o que seria de minha exclusiva culpa.
Sofri torturas de privação de sono durante os interrogatórios, que se prolongavam no
mínimo por um período de um dia e uma noite, até um máximo de sete dias e seis noites.
Fui sujeito a espancamentos, que num só dia e noite atingiram o montante de cinco. Os
espancamentos eram feitos por seis agentes, sob o comando do então investigador Abílio
Lopes, armado de um cassetete.
Alberto dos Santos Januário, Jornal de Coimbra, 20/4/99.
25 DE ABRIL. UMA AVENTURA PARA A DEMOCRACIA. TEXTOS JORNALÍSTICOS
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Marília Gonçalves disse...

Companheiros Amigos

ao passar por um blogue de testemunhos de como cada jovem do momento, viveu alegremente p 25 de Abril, nao pude impedir-me de deixar convite para que nos visitem e comentem aqui em Liberdade e Cidadania.
http://bbb.blogs.sapo.pt/75164.html?view=3655068#t3655068

Abraço
Marília