domingo, 25 de abril de 2010

24 de Abril de 1974 - Um conto!


É quarta-feira, são 18 horas. Estou no meu quarto, na unidade a vida decorre normalmente, como em qualquer meio de semana.
Tenho de ir à messe comer qualquer coisa e ultimar ordens e preparativos. Sem razão aparente estou apreensivo. Não me apetece falar com ninguém e menos ainda comer.
Quase não comi. Uma excitação moderada tomou conta de mim.
Passa-me na frente dos olhos o filme da minha vida. Desfiar de alegrias e amarguras. Êxitos e fracassos. Decisões certas e outras nem tanto. O último encontro com a guerra está bem presente, embora já lá vá quase um ano.
Hoje é diferente. Nunca disparei, nem mandei disparar contra gente da minha terra. Como me irei sentir?
Penso. Tenho trinta anos. Sou capitão há cerca de três. Na melhor hipótese faltam-me oito ou dez para major.
São 20 horas. Saio do quarto, vou beber um café e fumar um cigarro. No quartel tudo está calmo, como previsto. O que há a fazer terá de ser invisível até ao último minuto. Sou informado de que o primeiro comandante está na unidade. Também como previsto. Dou as últimas instruções, de acordo com o planeado e volto para o quarto.
São 22 horas. Que noite longa e que espera angustiante. Embora habituado a este nervoso miudinho, muito comum antes de entrar acção, hoje a coisa parece diferente.
Se tudo correr como se espera e deseja, prevê-se o resultado. Se pelo contrário não, bem! A Trafaria, a Graça, Peniche, Santarém ou Caxias poderão esperar por mim para uma longa estadia. Ah! E não esquecer que o Tarrafal ainda não está desactivado, embora só receba ultramarinos, pode sempre ser alternativa. Esperemos que não.
Vêm-me há memória as figuras e atitudes dos Generais Sousa Dias, Botelho Moniz e Humberto Delgado e o fim dramático de cada um deles, depois de terem abortado as suas intenções.
Como se irão portar os outros? Estarão com o mesmo ânimo? Esperemos que sim.
E o sinal que não chega. São quase 23 horas. Mal se ouve o transístor. Vou para a janela para tentar ganhar onda.
Eis finalmente. Um frémito percorreu-me o corpo e o nó do estômago começou a desfazer-se.
Caminhamos agora decididamente para o gabinete do comandante, que com conversa mole e paternal nos tenta dissuadir da acção, tentando intimidar com as represálias consequentes, a destruição da carreira, as consequências para a família, etc.. E se ele sabe do que fala! Conhece o regime por dentro e há muito que lhe pertence.
Em face da sua atitude, é desarmado e fica preso nas suas instalações, com um camarada armado a guardar a porta e o corredor de acesso.
Com esta situação demorei mais do que previa e não ouvi a segunda senha. Um camarada informa que a ouviu na rádio.
1 hora do dia 25 de Abril, estamos finalmente a sair da unidade e fazer-nos à estrada. Como estarão as outras unidades? Será que alguém se cortou? Haverá atrasos aos horários previstos? Bem! Dentro de poucas horas alcançaremos os objectivos e devemos ter ponto da situação em geral.
Como estarão as coisas com as outras forças? Será que se mantêm neutras, ficarão do nosso lado, ou irão pelo mais difícil e ficarão contra nós? Em breve o saberemos.
São 11 horas da manhã. Fora alguns percalços correu tudo como planeado. Não foi preciso disparar um tiro e as situações foram-se resolvendo. Ao que parece quase todas as unidades cumpriram os objectivos.
Todas as determinações que nos impusemos foram conseguidas. Todas as informações são no sentido de vitória. Mesmo assim, aquela sensação esquisita não me larga!
Fim de tarde de 25. Depois de cumprir outras missões que nos foram sendo atribuídas, regressamos à unidade. Tem um aspecto diferente. Parece mais leve e mais nossa. Será do dever cumprido? Será de querer acreditar num futuro diferente e melhor?
Vamos esperar e estar atentos.
Janto, calmamente, na messe. Tudo parece diferente. A mudança de regime, embora ainda incipiente já se nota.
Como terão corrido as coisas pelo país?
Bem! Afinal o 25 de Abril de 1974 acabou por acontecer.
O que nos reservará o futuro e as nossas capacidades ?
Vamos esperar e estar ATENTOS.

Um Militar,
25 de Abril de 1974.

4 comentários:

Marília Gonçalves disse...

COMPANHEIROS
Os que viveram Abril por dentro têm para contar o que apenas imaginamos
ou pressentimos. A magnifica ideia de partilhar essa vivência única
ajudará os que o não mediram bem, o quanto foi preciso de organização, de coragem de esforço, para ultrapassar todas as dúvidas, todas as perguntas até ao momento crucial em que tudo tinha início
Pela vossa coragem, Pela Liberdade que chegou pelas vossas mãos
Porque a vida começava com risos e canções no olhar de cada um, de todos os que pelas ruas se juntaram aos militares de Abril!
Pelas portas da prisão abertas para que os presos políticos voltassem à Liberdade, pelo Hino de Esperança que foi Abril, pelo regresso dos exilados e por quanto se seguiu de HUMANO, de extraordinariamente belo e progressista, pela radiosa fraternidade
o meu abraço de Abril, que não é apenas meu, mas de quantos a meu lado viveram o decorrer dos dias que se seguiram!
Até sempre Companheiros
Grata a todos os que de Abril, oficiais e soldados,tornaram realidade o mais Belo Dia da História

Marília Gonçalves

andrade da silva disse...

Caro Jeronimo

Como tantas vezes a ficção ou não fala tanto e tão bem da realidade.

Mas aos quarteis ninguém regressou no dia 25. O regresso a casa depois de tão gloriosa jornada, deu-se a 27 de Abril.

abraço
asilva

Jerónimo Sardinha disse...

Caro Andrade da Silva,

Sei que sim.

25; 26; 27, e nalguns casos até mais, foi de um correr desenfreado a resolver problemas.
Até porque depois daquelas horas, outros se levantaram de imediato e a que urgia dar resolução.
O País não parou. Bem pelo contrário. E havia forças ocultas a movimentarem-se fortemente.

Mas como bem dizes, a ficção também tem tempos e modos próprios.

Grande e Fraterno Abraço,
Jerónimo

Marília Gonçalves disse...

Apenas a violência pode servir onde reina a violência, e / apenas os homens podem servir onde existem homens


Bertolt Brecht