sexta-feira, 27 de março de 2009

UMA REVERÊNCIA À VIDA E À MORTE (CONCLUSÃO)


O mundo não nos ensina a morrer. A vida não nos ensina a viver. Alguns pensam que o importante é “fazer” e “ter”, mas mais cedo ou mais tarde, todos acabamos por perceber que não basta para conferir um sentido à nossa existência. É assim, que se reconhece da boca de um doente terminal a mágoa de terem passado ao lado do essencial. Começa então a angústia, cheia de brumas vazias ou cheia de marés de memórias.

O que fazemos da vida? Procuramo-nos, fugimos de nós, queremos saber quem somos…não temos tempo, a vida passa tão depressa…e por fim chega a morte. Na sua presença tomamos consciência de que a vida poderia ter sido diferente…mas é tarde…como pode alguém preparar a sua morte, num mundo que a denega? Sim, porque enquanto há vida, há ilusão… (Leloup e Hennezel, 2001).

O tempo de morrer possui um valor…a morte obriga-nos a encontrar um sentido. E ai, é bom que a vida tenha sido uma construção, e não apenas tempo que nos perde.

Trabalhar com doentes terminais obriga-nos a aproximarmo-nos do Outro com mais respeito, o respeito por ele estar mesmo para além daquilo que vemos. Não é a morte que mete medo, ela só requer bom comportamento, mas, para tal, temos de aprender a conviver, respeitar e tolerar o nosso íntimo…aprendemos a estar em silêncio connosco, nesse lugar profundo onde podemos deixar passar os medos, as emoções, a dor das coisas sonhadas e não vividas, as horas que não tivemos para conversar com um amigo, para ler um livro, para ir nadar, para entender a relação das coisas… às vezes, não pergunto o porquê do vazio, porque muitas vezes, ainda estão longe de o saber…basta perguntar: o que fez da sua vida?

Já muitos perceberam que não deram à vida a atenção que ela merece. Tal como descreve Mann (1980), no seu livro A Montanha Mágica, a expectativa da morte amadurece e leva-nos a travar contacto com o mais profundo da fragilidade humana. Também, Tolstoi (2004), descreve Ivan Ilitch, que via que ia morrer e estava desesperado. No fundo da sua alma, estava bem certo que ia morrer mas não só era incapaz de se afazer a essa ideia, não a compreendia sequer. Chorava pela situação desesperada, pela sua horrível solidão, pela crueldade dos homens, pela crueldade de Deus, que o tinha abandonado: “A vida fugia-me…e pronto! Tudo está acabado. Agora morre! É impossível que a vida seja tão estúpida, tão má. E ela é realmente má e estúpida, porque será preciso morrer e morrer sofrendo? Há qualquer coisa que não está certa. Talvez, eu não tenha vivido como devia?”

Para os profissionais de saúde, chega-se a uma altura em que se começa a conviver com a morte como se fosse uma amizade antiga, intima. Mas, ainda assim, cada morte tem um cheiro próprio, uma proximidade distante, uma submissão muda que grita, suspensa até que o coração cesse.

Alguns de nós estão mais em contacto com o seu interior do que outros, e isso dá-lhes um entendimento fatal de que estamos cada dia a viver e a morrer simultaneamente. Quando tal sucede, um milhão de pensamentos correm-nos pela cabeça, entre os quais: quanto tempo me resta? O que faço e o que fiz da minha vida? O mundo não devia parar para eu pensar nisso? E se hoje fosse o nosso último dia na Terra?... Mas, o mundo não pára, nem repara em nada! Continuamos apenas nos entretantos…

Segundo, Morrie (cit in Albom, 2006), quando se está a morrer, despes toda a tralha e concentras-te no essencial. Vemos tudo de maneira diferente, ao aprendermos a morrer, aprendemos a viver. Mas, como aprender a morrer, se nem viver sabemos? Se passamos a vida a correr, se passamos a vida a pensar no próximo carro, na próxima casa, nas próximas modas, no próximo emprego, no próximo jogo, no próximo “fazer muita coisa” sem sentido…depois, descobre-se que essas coisas são vazias, mas continuamos a correr. E uma vez começado a correr, é difícil abrandarmo-nos a nós próprios. Por isso, perdoa-te a ti mesmo antes de morreres. E se possível, toca nos corações de toda a gente que contigo se cruzou enquanto aqui estiveste.

Sabemos que nada é perfeito, aliás, a perfeição cria um vazio… mas, só no silêncio a verdade de cada um vinga… Por vezes, parece que temos mesmo de “morrer”, para podermos renascer emocionalmente…para com outros olhos ver o mundo. Às vezes, é quando nos “perdemos” que descobrimos as coisas mais interessantes...

Contudo, é essencial que nessas pequenas mortes, não nos deixemos cair num vazio ainda maior de sentimentos, tal como relatado por Camus (2006), que parece ter mergulhado num mar vazio, onde a essência da vida tornou-se apenas: (sobre) viver. Sugere-nos a visão de que somos nada mais que animais irracionais na nossa singela existência, em que a morte é apenas uma consequência natural da vida.

A vida é uma viagem e o sentido da vida é sermos nos próprios e termos paz com isso. Assim, cada verdade se fará lentamente…

Tudo dá para alguma coisa mais vasta do que a gente. “Quem demonstra reconhecimento à pedra por ter servido de fundamento ao templo?” (Saint-Exupéry, 2008). E quem demonstra reconhecimento à morte por despertar a metamorfose de nos descobriremos cada vez mais? Será que num mundo ideal, algum de nós desejaria nunca morrer, viver para sempre?

“Mestre, que dor tão grave experimentam que tão alto faz que se lamentem? (…) Dir-to-ei rapidamente: estes não têm esperança de morrer e a sua vida cega é tão ignóbil que invejam qualquer outra sorte que seja” (Dante, 2007, pp.18)

Nunca morrer é muito mais assustador… Todavia, também há, quem tenha medo de viver, medo de escalar a montanha onde descobrimos a nossa verdade, mas é de lá que vemos a vida e a sua magia, o Outro e o Outro em nós. O entendimento do porquê de estarmos aqui.

Assim, será possível a curiosidade de saber o que vem a seguir à morte? Sem sentir a angústia da perda de mais uns minutos que se foram para sempre?



Estela Landeiro
Psicóloga Clínica
Mestre em Psicoterapia e Psicologia da Saúde
Serviço de Medicina Paliativa – Centro Hospitalar Cova da Beira E.P.E

6 comentários:

Marília Gonçalves disse...

O Relógio da Torre

Para quê saber o fundo da angústia
este uivo vendaval que cedo surpreende
para quê conhecer a hora da argúcia
quando voam gaivotas sobre corpo de sede.

Remoinhos nos olhos levantam pensamentos
onde folhas de Outono poisaram tristemente
o cofre das lembranças e o de sentimentos
deixam voar saudades a desfazer-se sempre.

Só uma badalada no pêndulo da torre
por uma hora magra, breve que nos resta
enquanto sobre nós cada dia que morre
na espessura da noite vai cobrir a floresta.

O cantar de sereia vem do tempo de Ulisses
ou navio que se afasta na estridência do cais
a navegar a bruma duma ilha de Circe
no rouco som que parte para não voltar mais.

O perfume de Agosto sobe do fim do tempo
com risos a cantar e manhãs a nascer
mas são vozes do cofre, que estão em movimento
ou retratos antigos a chegar pra nos ver.

Tudo quanto nos cerca tem o tom conhecido
da constante paisagem do que somos na vida
como oferenda eterna do eco pressentido
no timbre cor de mel que nos serena ainda.

Minutos de surpresa e continua a espera
vertigem de viagem no encontro dos dias
mesmo se o mês de Outubro nos cheira a Primavera
vão pairando no ar as velhas sinfonias.

A mão que nos segura, vacilando fraqueja
o tempo tem limite, tem portas e fronteiras
o instante sereno que nosso alento beija
vai desfolhar a flor de nossas sementeiras.

Somos ainda sol amarelo de Verão
uma praia aquecida no acaso da tarde
uma palavra solta na voz duma canção
uma fímbria de luz na breve imensidade.

Uma certeza só, perdida, inviolável
que nada trairá nem poderá vencer
o encontro perene de olhar inevitável
vestido de distância, mas que nos faz doer.

O solitário apito, um chamamento apenas
acena-nos de leve a esperada viagem
e nossas pobres forças, humanas, tão pequenas
vão subir o degrau da última coragem.

Marília Gonçalves

Marília Gonçalves disse...

Este poema ganhou o 1°prémio de Poesia em Portugal, "DAR VOZ à POESIA"
ORGANIZADO ANUALMENTE EM AVEIRO
e dirigido pela DR ILDA REGALADO

Marilia

Anónimo disse...

Dra.Estela Landeiro,
Li com muito interesse o seu belíssimo texto de que gostei muito, mesmo muito.
Só uma Psicóloga Clínica com pratica hospitalar e integrada nos Serviços de Paliativos poderá conhecer tão bem esta realidade um tanto ou quanto confrangedora. Mas que, de certo modo, nos é transportada pela civilização e que se pode considerar em duas vertentes. A que nos é dada pela estatistica relativamente à longevidade,conseguida pelo avanço quer da ciência médica, quer da tecnológica. E aquela em que os pacientes não podendo permanecer nas suas casas por falta de estruturas ou acompanhamento familiar,recorrem ao internamento hospitalar e também porque aí poderão usufruir de cuidados clínicos impensáveis em casa. É, pois, uma realidade dura e por vezes até cruel se as respectivas famílias não forem às visitas e portanto não lhes derem um pouco de apoio e de carinho.
Como muito bem afirma, Dra. Estela Landeiro, a morte faz parte da vida. E, se me permite. gostaria de lhe perguntar: Quantas pessoas mesmo com saúde, durante o percurso da sua existência não se encontram bastas vezes sós e a sofrer de solidão?! E isto, lamentavelmente, não se verifica somente na 4ª ou na 3ª idade, nem só nos adultos, mas também nas crianças e adolescentes, que devido às exigências do quotidiano, os seus progenitores não lhes dão a atenção precisa e devida.

Felicito-a e Cumprimento-a
Maria José Gama

Estela disse...

Mais uma vez, obrigado pelas palavras tão carinhosas que me deixam neste blog.
À Maria José Gama (e por favor, aqui não me trate por Drª, Estela chega!:)Isso não acrescenta nada ao Eu que gosta de ver com olhos de ver!), gostaria de dizer (e como certamente sabe), que morrer ninguém quer. Todos queremos é acabar com o sofrimento em que vivemos, tal como refere. A questão é porque é que sofremos ou porque é que outros à nossa volta nos fazem sofrer!?? E porque é que nos deixamos abater por isso?...por sermos humanos!? No fundo, sabemos que tudo o que fazemos é para suprimir uma necessidade nossa ou dos outros... Afinal, só nos falta aprender a viver!!...Não podemos mudar os outros se eles não virem necessidade nisso!...Muitas vezes, é só no fim que vemos que a nossa vida não fez sentido, mas depois...já não há tempo..é nessas pequenas "mortes" dos dias que vivemos que deviamos mudar o que nos faz sofrer...
Se tivessemos sempre saúde, amigos, amor e curiosidade em aprender sempre mais, porque haveriamos de querer morrer?
Não creio que existam vidas encantadas, não creio que não exista alguém sobre este mundo que nunca tenha pensado ou desejado a morte...mas, isso não é mau, é um sinal...um sinal, de que algo não está bem...e que é precisso ser mudado..é que as "mortes" também trazem sentido à vida. Se vivessemos sempre, tudo se tornaria efemero...sem sentido.
O problema é que muita gente tem mais medo de viver do que de morrer, e esqueçem constantemente que tudo isto é apenas uma passagem...o ser humano tem de aprender a dar valor ao que realmente interessa neste mundo... para chegar ao fim, seja lá ele quando for, e ter o sentimento de dever cumprido, depois a morte...só exige bom comportamento...
Temos de repensar a vida e o nosso Eu interior. E estar atentos aos que estão à nossa volta, aos mais jovens ensinar valores e ideais para que se contruam como seres humanos integros, neste mundo cada vez mais efemero e consumista..que só leva ao vazio interior...é por isso, que costumo dizer que esta sociedade deve estar à beira da fase terminal de uma estranha doença...
Com carinho,
Estela Landeiro

Anónimo disse...

Estela Landeiro
Muito obrigada pelas suas palavras e resposta relativamente ao 1º comentário que expressei na 1ª parte do seu artigo,"Uma Reverência à Vida e à Morte" e que, certamente por erro meu, apareceu editado na conclusão. O 2ºcomentário referente à Conclusão desse seu texto foi editado em "Ressurreição". Mas, como é dirigido à Estela e não à Ressurreição, transcrever-lho-ei de seguida:
Um abraço
Maria José Gama

O 2º Comentário:

EUBIÓTICA – É como sabe “A Arte de bem viver”.
E, como a morte faz parte da vida há quem deseje morrer com a mesma dignidade com que sempre viveu.
Como assídua leitora deste Blogue Liberdade e Cidadania tive o privilégio de ler este seu texto, "Em Reverência à Vida e à Morte" que tem muita força, a qual lhe é transmitida pela observação directa de doentes em fase terminal, que com o seu saber e carinho procura suavizar.

Exactamente "Em Reverência à Vida e à Morte" gostaria de lhe pedir que lesse um texto meu sobre “Eutanásia” que se encontra publicado e em debate no MIC, cujo link é: WWW.micportugal.org
e se encontra em Lugar de Cidadania

Um abraço,felicidades e Bem Haja pela sua profissão quase missionária e tão meritória.

Maria José Gama

27 de Março de 2009 23:29

Anónimo disse...

Obrigada Dra. por este excelente texto. Caí aqui sem querer, procurava qualquer coisa que me ensinasse a minimizar o sofrimento do meu irmãozinho que está nos ultimos dias de vida, lutou contra um cancro do pancreas durante 3 anos.Não venceu. Aqui encontrei coisas que precisava saber, para me confortar...para o confortar e para nos ajudar a suportar a dor que a morte sempre provoca. Já perdi o meu pai, a minha mãe e agora vou perder o meu unico irmão. Agradeço aos cuidados Paliativos tudo o que fizeram para os ajudar a superar a dor e ter alguma dignidade até ao fim desta viajem a que chamamos "Vida".

Mia Aguiar